O mundo está muito gasto. É cedo,
Certamente me diriam: o café ainda entope
As artérias do ar do dia, misturando sua fumaça
Ao escasso oxigênio. É cedo.
Respiramos alvoradas através de janelas
Fechadas. Roubaram-nos da paisagem
Os excessos coloridos. Restaram contornos
E cinzas.
Para pagar as contas, o dinheiro,
Síntese de objetos. Não se compra
Mais feijão, mobília, gás, apartamento.
Atrás de espelhos, cofres dilatam-se
– contorcionistas gordas e ridículas.
Vomitariam sonhos? Telas de computadores?
Passagens para Paris? Já nem sequer vomitam.
Sangra-lhes o nariz.
Mas é cedo: por que tens pressa?
Por que não ficas por mais um instante?
É sufocante lá fora. Chaminés cospem resíduos
Da vida arrancada à força aos ossos arrebentados
Do ofício. É cedo.
Não deixes gatilhos sangrarem
Como faziam navalhas. A guerra
É silenciosa. Vitórias não nascem da guerra.
Os alardes dispararam, os alarmes quedaram
Tranqüilos. Os olhos ficaram fechados.
Ouvidos, ensurdecidos. Lírios, apenas,
Coabitam o paralítico corpo: co-lírios,
Pingando, nervosos, repetitivos, como se houvesse
Remédio. É cedo, tu não tens medo?
Notícias soletram o espetáculo,
Arrombando-nos a porta. Logo cedo
(eu sei que é cedo), vêm a morte,
O assassinato, as trombetas refulgentes
Do narcotráfico azul, contra as pungentes cores
Da aurora. Contemplarmos a pintura,
Enquanto Elza põe o café, é uma questão
De ordem. É uma tarefa. Debruço-me
Sobre os papéis, supondo realizar
A dramática leitura dos fascículos mais últimos
Da História de Nossa Arte.
Manhã: legado da noite redonda
– que artilharia te espera, montada sobre cavalos,
Pronta a já fuzilar-te?
Levaram-nos o fogo. Está escuro.
Faz frio, e contudo sabemos que raiou
O dia novo amanhecido.
O mundo está muito gasto, não vês
A resina de sua pele a desmanchar-se?
É preciso que nos venha um novo Dia.
Que o café brote da terra e se dissolva,
Isento de mais-valia, pelas bocas, nas gengivas,
E nos farte e nos impila a seguir cantarolando.
Preciso é que se coloque, amarrotados,
Tomos, contas, notas, fichas, os diários, as gazetas
Em valises de cadeado, e que se esqueça
O segredo para abri-las. Abrir apenas janelas
E os vidros de loção,
E os armários e as gavetas, e os botões
Dos sobretudos que apertavam nosso peito!
É tanto cal encobrindo a podridão,
Nos descampados do dia... Cavemos,
Ainda que nossas pás sugiram apenas cócegas
Diante de escavadeiras
Que o inimigo desembainha. Ao inimigo,
Quero-o morto. Tanto faz que seja
Rindo.
Multidões? Diluíram-se.
Ideais? Esconderam-se, difusos,
Sob a bruma traiçoeira de hoje-em-dia.
Amanhece, porém, e ainda está cedo.
Estou sozinho. Tu estás sozinho. Amanhecer
E estar sozinho, então, nos une,
A todos, no mesmo diagrama de fraqueza.
A nova luta não supõe delicadeza. Lutemos,
Pois, sob este toldo! Lutemos, pois sob este toldo
Encarcera-se a cidade, o mundo todo. Dia:
Toldo sob o qual vigora, ainda,
Um triste resquício de liberdade.