quinta-feira, 20 de março de 2008

a flor

A cidade de cabeça para baixo. Espelho de todas as angústias, de todas as vontades. O caos explosivo, a bomba atômica urbana. E a flor decorrente de tudo.

A flor de tijolos sem reboco. A flor de ruelas apertadas de muito concreto cinza e terra. A flor sem cor. Tudo. É o pânico atômico às margens do rio-cidade. Uma linda flor que nasceu no meio da pedra sem vida, nasceu sem vida, sem história, sem lógica e sem filosofia. A linda flor que não nasceu, mas foi nascendo e está nascendo até hoje. É a fumaça asfixiante despetalada. Desesperada. O borbulhar fervente de pétalas soltas num caldeirão urbano. Cada pétala é uma flor, e cada flor é um jardim inumerável. E a matéria pontual, o átomo sem dimensão, a luz sem matéria iluminando e permeando tudo.

A poesia pura dessa flor. Poesia dura dessa flor. Poesia com fio de navalha, debaixo do sol, acima da terra de ninguém. A perfeita sintonia de idéias sem rima e sem métrica. A metáfora incômoda e a rima única e exata - flor com dor. A elipse imagética que oculta tudo sem vírgulas, mas sem deixar nada subentendido. À exceção óbvia do amor.

O amor não rima com a flor, mas está nela como sangue na veia: correndo, vital. O amor cortante e sujo, o amor sem beleza, cru, indesejável. O amor do vírus. O amor da barriga cheia. O amor precoce. Latente. Premente. Explosivo. É assim o amor que se esconde ali, quando a flor, tímida, murcha à ausência profunda de luz solar. O amor inconstante, imperceptível. Amor que vai à igreja e à praia. Amor nu e casto. Amor que desce junto com destroços de madeira e eletrodomésticos as enconstas da montanha quando chove (isto é amor inseguro). A feira e o tráfico de drogas. O som dos pregões e das metralhadoras. Amor. Pura poesia. Dura poesia.

Dura poesia que acorda antes do sol e desce para trabalhar. A flor refulgindo à luz do astro-rei tímido. A flor rompendo com culpa e preguiça. A flor se abrindo ao ritmo alucinante do dia na cidade. Cada gota de sangue. Cada vento oeste. Cada micro-flor corriqueira que se veste e some na imensidão urbana. A vasta sombra caótica, a sombra irremediável, a sombra à guisa de cela. Todos presos. Sem grades.

O neo-apartheid urbano. A raça nova sob a sombra da flor sem ideologia e sem esperanças. O mistério da vida dividido em dois lados. Cada lado dividido em dois lados. E o multisegregacionismo infinito e desigual, partido em mil lados. A flor fica com o menor deles. As novas tendências e os novos desafios. Os medos de sempre, espiando assustados das mesmas janelas sem grades.

O neo-realismo. Romance pálido e mil casinhas enfileiradas, mil homenzinhos enfileirados. Toda a estética útil e aproveitável, o plástico, o real osmótico da arte. Antenas de TV. Tijolos. Santinhos espalhados e vereadores corruptos e bem corados. O ato corriqueiro enfiado num saco preto, sob inenfáticos pelos-sinais. O saco de lixo. O exato saco de lixo nunca ambíguo. A flor eufemismo. A flor anarquismo.

A arte dessa flor. Ininteligível. Uma flor é uma flor é uma flor. Adaptações livres. Arte gravador. Arte baile funk. Arte ineditismo e incompreensão intelectualóide. A falsa aceitação da arte flor. As paredes feridas. As cores cortantes. As formas que não se encaixam. Mas se encaixam. Sempre se encaixam.

A flor nunca esteve aberta para o verdadeiro sol. A flor com seu miolo frio e escuro. Flor infértil - a própria negação da flor. A esterlidade daquelas terras, o sexo inútil, a perversidade e o caos total. O nunca desabrochar dessa flor em corpo. O fogo apagado. E as mulheres de olhos fechados lavando roupa e indo se lavar mais tarde. Sujeira acumulada na flor. No cerne profundo da flor.

Flor de Marx e de Drummond.

Flor da América e da África. Da Indo-China. De Massachussets.

Flor do Rio, cantada em verso, catada numa prosa perdida e muito triste. A flor dando autógrafo em Cannes, posando ao lado da estatueta. A flor celebridade em todas as primeiras páginas. Flor chacina. Flor atentado. Flor atenta em sua eterna vigília noturna. Fogos de artifício.

O turismo penalizado pelas entranhas da flor. Os flashes e as carteiras batidas. O olhar estrangeiro. Xenofobia invertida e pretos comendo ovos cozidos. O ritmo dissoluto. Tambores do meio-dia. Jardim sem flor.

A rainha das flores com seu manto verde-rosa sob o céu azul e branco. O Carnaval. A festa da flor. A festa da gente. Os sorrisos brancos. A flor aberta dançando até o romper do dia. O romper do dia. Sonho em sol. Flor.

A flor perdida no meio do nada. E todas as coisas que se abrem à luz do sol, mas não a flor. Os ratos urbanos, roendo a velha tecitura da cidade. A frágil trama da cidade ardendo sob o sol. A velocidade, o peso, a pressa. Os bueiros e os carros de polícia. Os quartos escuros e as avenidas beira-mar. Sobrados. E a flor imperando acima de tudo. A flor com seu olho que tudo vê, seu terceiro olho atento. A flor pura. Cega, surda, muda e sem coração.

Mas bate outra coisa no peito fundo da flor. Bate sem tempo. Bate insólita. Bate fundo no peito da flor. O silêncio que se curva a esta parca música. O céu que se fecha àquele compasso. Arrepio. Flor de pânico.

A flor. Fechada. Fachada. Flor sem entranhas. Perdida no caos da cidade. Flor universal de todos os ritmos, de todas as línguas da gente.

Flor.

Pura e terrível.

A flor afogada e morta no fluido urbano. Flor sem cor. Sem vida.

Flor favela - flor triste.

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