terça-feira, 18 de março de 2008

sons do silêncio



Falta um esgar de choro, a simulação de um sentido, o rascunho de uma vontade, a luz fraca do desejo, da ardência, um pulsar ínfimo de vida, um sobressalto, um pré-sobressalto, o menor estímulo, o dente de uma risada, qualquer coisa que se sinta.

Falta abandonar esse comedimento que torna escassa a realidade; falta extrapolar o limite do possível e do impossível. Falta conquistar a natureza, repirar o vento, encostar o céu. Falta um suspiro, um sopro que espalhe essa latência falsa. Falta ser explícito, revelador, tocante.

Falta uma necessidade aflita e desesperada diante das coisas do mundo; falta abandonar o deslumbramento cego e intátil para partir em busca de uma essência participativa. Falta abrir os olhos, e não fechá-los, e não escondê-los, diante da inefável presença. Falta calcar as possibilidades no campo imprevisível do sonho, sem medo.

Falta uma dinâmica de asas, um movimento qualquer, uma inteligência, mas natural, para alçar vôos seguros sobre um mar aleatório e desconhecido. Falta uma criação, uma estética que seja desencavada dos confins mais antigos do Universo e mesmo assim traga o clarão mais inovador do sol. Falta uma vertente de qualquer coisa que troque a sobriedade dissimulada pela volúpia, pela tristeza sem nexo do sexo.

Falta embriagar-se de desejo, porque somente o desejo desenha os movimentos e traça as órbitas humanas, porque o único combustível verdadeiro está no encontro, na carne, no toque, porque o desejo é o fogo esclarecedor e estarrecedor. Falta recusar-se a se algemar nessa liberdade podre e pobre que pretende mover, através de estúpidas catarses ensaiadas, os povos através dos tempos e dos espaços; falta embebedar-se no éter e no etéreo sem estar atrás da epifania-modelo que só revela o velho. Falta embebedar-se e um dia vir a se deparar, sem saber, sem querer, com a verdadeira epifania - essa sem cunho espiritualóide, sem sentimentalismo, sem corpo para almas de outros mundos ou de outras vidas - uma epifania com espaço somente para o nosso corpo, a revelação do nosso corpo, da carne, do sangue, do músculo, da pele e da cor.

Falta um despudoramento da matéria com inteligência, e da essência.

Somente uma virtude gravita entre o bem e o mal, somente um sentido permeia a humanidade e é puramente humano, e não está no espírito ou na mente, somente um estalo diferencia todos os outros sons do silêncio.

Um comentário:

Unknown disse...

lindos textos no blog, parabéns.
gostei demais deste, sobre o desejo. Somos feitos de desejos e nossos desejos movem montanhas.